quarta-feira, maio 22, 2013


O filme Dogville retrata os acontecimentos em uma pequena cidade dos EUA, onde aparentemente a vida é tranquila e pacata, até a chegada de uma estranha chamada Grace que esta fugindo de um grupo de gângsteres. Em busca de um abrigo ela encontra Tomas Edison, um morador do vilarejo que nutre sonhos de lançar um livro sobre ilustrações a respeito da moral. O filme tem o seu desenrolar em um grande palco sem paredes, somente com traços riscados no chão escrito com os nomes das casas das pessoas. O filme se passa em nove atos donde o desenrolar dramático é chocante e indigesto, porém, verdadeiro em sua nudez. Esta nudez se revela no comportamento de uma comunidade que ao receber em seu centro Grace (graça) representando o estranho, ameaça a coesão do lugar remexendo o inconsciente e ao mesmo tempo a sombra das pessoas que depois de certo tempo começam a se aproveitar de sua culpa em estar estragando o sossego do lugar com a polícia a procurando sempre. Grace é uma jovem moça interpretada belamente por Nicole Kidman, que o tempo todo tenta através de todos os meios possíveis (desde engraxar o sapato da empregada da vila até servir de objeto sexual para todos os homens do lugar que passam a estuprá-la todas as noites), agradar as pessoas, ser cortes e mostrar uma moral imaculada, sempre no sentido de ser aceita na comunidade, que de algum modo parece nunca aceitá-la.
Alguns elementos no filme merecem destaque como o nome do único cachorro da vila, Moisés que representa justamente o que falta a vila, a figura de uma real autoridade, de um arquétipo do Grande Pai. O tempo todo tanto Moisés, quanto as paredes das casas são riscadas no chão, mas não existem denotando uma total ausência de separação entre interioridade e exterioridade.  Aquele que deveria ser o líder, Tom, também é carregado pela psicose de massa em que o mais importante é sempre ser igual à imagem a qual todos sempre  serviram-se para nomeá-lo. E mesmo ao final do filme em que Tom vê seu futuro promissor como um filósofo, manchado pela sua culpa revelada por Grace. Este (Tom) a entrega aos gângsteres, demonstrando que no final, Dogville nunca se abriu para o novo fazendo deste (Grace) um bode expiatório para todas as culpas não assumidas pelos moradores. Tom, nunca fora fiel a sua filosofia de abertura para o outro, já que nunca acolheu este outro, nucna houvera outro. Assim, este personagem demonstra a realidade política social de pessoas que querem se promover através da publicidade de bons atos, mas que na verdade, na intimidade é justamente o contrário, a hipocrisia social. Assim, Moisés continua somente em sua presença fantasmática como um latido no cenário, assim como as portas e paredes mostrando que em uma sociedade em que não há diferenciação entre interno e externo, público e privado, onde todos sabem a respeito de todos não há como colocar ninguém para dentro já que não há um dentro. Dogville é o exemplo de uma sociedade que fracassa, da ausência de um líder que por não existir é escolhido como o mais fraco, o mais manipulável, este é Tom.
É muito interessante o desenrolar da história que mostra o gângster chefe como o pai da protagonista Grace. Ele quer apenas conversar com ela, apenas mostrar a mesma sua arrogância em não reconhecer que as pessoas precisam de uma oportunidade para confrontar seus erros, e isso só é possível através de outro que demonstra esses erros, não precisando ser aceito por essas pessoas. Mas Grace demora a conseguir digerir as palavras do pai, tanto quanto Dogville, Grace só legitimou a lógica hipócrita daquele lugar, seu desapego abnegado, seu sacrifício e seu perdão na verdade só perpetuava a mesma lógica, era um combustível para a psicose coletiva de objetificação perversa do outro. A esperança de Grace em ser aceita representada pelas luzes do cenário se transforma, para ela, em pura ingenuidade quando a mesma aceita o conselho de seu pai de que não é errado se abnegar ou ser bom, contanto que seja nos momentos certos. Assim, a figura do Grande Pai para Grace consegue ascender à consciência, mas em um processo compensatório, o encontro com o animus paterno de Grace a possui retirando sua capacidade de decisão e reflexão, ela consegue diferenciar sua personalidade aceitando sua origem como filha de um homem poderoso, mas ainda não consegue se livrar da arrogância. Antes era a abnegada, solícita e bondosa, depois passa a ser  terrível e cheia de poder a ponto de eliminar perversamente a todos.
Ainda sim, há muita divergência com relação à Grace, ela consegue integrar sua sombra (arrogância) matando todos na vila e extirpando a vila do mapa? Ou esse movimento é nada mais do que um processo coletivo de enantiodromia*, onde esta fora dominada pelo arquétipo sombrio do pai que era ausente naquela sociedade? Dá o que pensar! De qualquer forma o que o filme nos dá a entender que Dogville é na realidade um lugar simbólico que diz sobre uma dialética entre os opostos psicológicos. Na medida em que Grace é tratada como um animal, um cão pelos moradores da vila, este cão devora a própria vila em sua fúria. Assim como ao não reconhecer o seu animus paterno, Grace se vê em um estado de ingenuidade moral, compensa isso através de uma atitude extrema de utilização de seu poder sendo o próprio martelo de condenação da vila. Não se sabe o porquê, o cão desenhado no chão é o único sobrevivente, porém, continua preso e é abandonado. Seria como se Grace abandonasse a real possibilidade de autodeterminação moral? Significaria que a protagonista, assim como os moradores da vila, não se atentaram para aquele que deveria ser o protagonista da consciência coletiva? O cão Moisés? A lei representada por um cão encerra em si um paradoxo. Como um cão que em sua natureza dócil e compassiva, um animal doméstico, pode representar uma lei, já que não pune? O filme nos dá uma significativa lição do que representa uma sociedade massificada em que o individual não é considerado, forças se compensam e retornam ao seu lugar de origem nos dando uma sensação de satisfação (como nos sentimos quando o filme acaba e Grace se vinga), mas o indivíduo da mesma forma continua inexistente, Moisés ainda continua esquecido e deixado para trás.

*Enantiodromia: “Passar para o outro oposto”, uma “lei” psicológica pela primeira vez esboçada por Heráclito, significando que mais cedo ou mais tarde, tudo se reverte para seu oposto. Jung identificava isso como “o princípio que governa todos os ciclos da vida natural, desde o menor até o maior” (CW6 parág. 708). (SHORTER, SAMUELS & PLAUT, 1988 http://www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/enantio.htm).

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